Cerveja do mês: Demônia

A seção “Cerveja do Mês” de agosto traz um rótulo original do Vale do São Francisco: a Demônia. Desenvolvida pela cervejaria NaTora HmB, esta cerveja carrega em si doses de pioneirismo e uma história um tanto inusitada. No mês maio de 2016, em uma das brassagens da Assum Preto, uma Black IPA da NaTora HmB, quando foram proceder à etapa de engarrafamento, os cervejeiros perceberam que algo diferente tinha ocorrido: O líquido havia ficado na cor marrom, em vez da conhecida coloração preta da Assum. “A gente ficou meio sem saber o que fazer pois o resultado final tinha ficado bacana, com as mesmas características que ela tem hoje. Foi então que decidimos mudar o nome; reunimos um grupo de amigos para testa-la e um deles sugeriu chamar a cerveja de ‘Demônia’, em referência ao seu sabor mais forte. E assim ela surgiu: em virtude de um erro na receita, chegamos a um resultado com ótima drinkability”, explicou Maria Cecília Vasconcellos, engenheira agrônoma e cervejeira na NaTora HmB. “Depois a gente investigou e constatou que uma das lojas onde compramos os insumos tinha enviado o malte errado, que originalmente era para dar a coloração preta típica da Assum”, justificou.

Em 2017, depois de aperfeiçoar a receita da Demônia, a NaTora HmB obteve o registro do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). A cerveja tornou-se a primeira da região a ter este tipo de credencial. Isto permite que a Demônia possa ser comercializada em qualquer estabelecimento do Brasil. “Este registro abriu muitas portas para a gente…espero que sirva de incentivo para outros cervejeiros artesanais buscarem a formalidade, pois o alcance do produto passa a ser muito maior”, argumentou Cecília.

Ao analisar as características da Demônia, os cervejeiros da NaTora perceberam que a cerveja era compatível com a classificação “Brown Ipa”, segundo a última atualização do BJCP de 2015. “O estilo Brown IPA surgiu de uma variação das Brown Ale, porém mais lupulada. Para nossa sorte, a gente percebeu que a Demônia se encaixava nesta classificação, que é oficial. Portanto, a gente não perdeu a receita e o erro se transformou em regra; a Demônia passou a ser a nossa cerveja mais solicitada e a gente não fez mais a Assum Preto”, complementou Cecília.

Evocando a Demônia

Nota-se que a Demônia é uma cerveja bem equilibrada desde o momento de servir. Seu corpo apresenta tonalidade escura e opaca, formando-se lentamente através de bolhas finas que se incorporam à espuma de cor cremosa. O aroma, que possui certa persistência, me parece uma sinergia entre o adocicado (caramelo) e o torrado, com uma puxada maior para o primeiro, provavelmente em função da combinação de maltes. O gosto amargo (70 IBU) e teor alcóolico de 7,5 % me fizeram pensar na Demônia como a cerveja ideal para encerrar uma sequência ou harmonização. O retro-gosto provoca bom amargor, fazendo seu aroma permanecer por alguns instantes mesmo após terminar a garrafa.

Via de regra, recomenda-se harmonizar uma Brown IPA como a Demônia com uma carne apimentada, hambúrguer ou petisco picante. Entretanto, Cecília sugere outras harmonizações da sua cerveja com kafta e com carneiro, que é uma carne regional e de mais personalidade. Outra dica da cervejeira é harmonizar a Demônia com alguma sobremesa, por exemplo um sorvete de creme.

A cerveja Demônia pode ser encontrada com facilidade no Vale do São Francisco em lojas especializadas como Empório Saint Anthony (Petrolina) e Top Distribuidora (Juazeiro).

Análise sensorial com off-flavour: percebendo problemas

Imagine um grupo de 20 cervejeiros artesanais reunidos em um mesmo local por cerca de três horas bebendo somente cervejas com problemas, por exemplo, odor de vinagre, mofo, gosto de vegetais podres ou de papelão? Parece algo difícil de acreditar, mas este encontro aconteceu no último dia 02 de agosto em Petrolina-PE. O evento foi uma análise sensorial promovida pela Associação de Cervejeiros Artesanais de Pernambuco (ACERVA – PE) realizado nas instalações da Haus Bier, conhecida micro cervejaria na região do Vale do São Francisco. Basicamente, a dinâmica foi experimentar um  estilo específico de cerveja alterado pela inserção de off-flavor, flavorizantes líquidos que emulam odores e sabores característicos de problemas que ocorrem no processo de produção da bebida. As causas desses males podem variar desde uma simples limpeza mal feita no equipamento até problemas de pressurização, temperatura, qualidade de insumos etc.

 

Cervejeiros artesanais e iniciantes reunidos para análise sensorial promovida pela ACervA-PE

A dinâmica funcionou da seguinte maneira: vinte participantes foram divididos em quatro mesas, sendo duas com seis e duas com quatro componentes; a configuração de cada uma foi pensada de forma estratégica, combinando lado a lado cervejeiros com mais e menos experiência no intuito de gerar uma discussão profícua. Sentado à mesa, o participante ficou diante de um quadro onde os copos foram alinhados em quatro sequências de cinco, totalizando vinte provas. Cada recipiente continha cerveja comum alterada com gotas de um off-flavor específico, que emulou uma situação que pode ocorrer no processo de produção da cerveja. Depois de provar, os componentes da mesma mesa conversavam entre si por cerca de 10 minutos para deduzir o problema. Em seguida, cada um aponta apontava sua opinião e o facilitador revelava qual era o off-flavor misturado na cerveja.

Off-flavour sobre o quadro usado na atividade.

Para um dos participantes, o engenheiro agrônomo e cervejeiro Marcos Vianna, este momento serviu de treinamento para ampliar sua noção sobre os erros mais comuns que podem ocorrer na produção da cerveja. “É muito importante esta dinâmica, pois conhecendo esses off-flavour o cervejeiro pode evitar que isto faça parte da sua produção”, afirmou.

Organização da sequencia criada em uma das provas.

Segundo um dos facilitadores, o cervejeiro na NaTora HmB e no Doutorado do Chopp Igor Veras Silani, esta atividade serviu para agregar conhecimento à formação do cervejeiro, contribuindo para que ele possa identificar defeitos e busque soluções para corrigi-los. “Este tipo de exercício é importante para que o cervejeiro não consiga apenas perceber esses problemas na sua produção, mas também em outras cervejas sobretudo as comerciais”. Igor ressalta que em alguns casos os problemas causados pelo off-flavor podem ter um “efeito inverso”, destacando exemplo da Heineken. “A Heineken tem um off-flavour chamado Lightstruck, que foi bem aceito por críticos e consumidores, tornando-se característica marcante de seu sabor”, finalizou.

 

Entenda alguns casos

O exemplo do Lightstruck – que em português pode significar “exposição à luz” ou “golpe de luz” – da cerveja Heineken é um dos mais conhecidos, justamente por produzir o tal “efeito reverso”. Em vez de aparecer como algo desagradável na degustação da cerveja, o efeito deste off-flavour tornou-se uma característica marcante da Heineken. Nas tradicionais garrafas verdes dessa cerveja, a incidência de luz faz o lúpulo liberar um componente chamado MBT que causa Lightstruck.

Outro off-flavour muito comum é o Clorofenol, que diferente do lightstruck causa um sabor desagradável na cerveja. Ocorre por conta dos resíduos de cloro no equipamento usada para fazer a cerveja, que permanecem após enxague ineficiente O Clorofenol tem odor e sabor que lembram enxaguante bucal ou esparadrapo velho, sendo facilmente reconhecido pelo consumidor. Já o off-flavour Catty ou simplesmente xixi de gato é menos frequente que os outros dois, sendo causado pelo uso de lúpulos específicos inerentes a este tipo de aroma.